terça-feira, 7 de janeiro de 2014

A burocracia afoga a sociedade civil brasileira


Demonstrar que uma pessoa é ela mesma, preencher infinitos formulários, apresentar inúmeros documentos, fazer fila em todas as janelinhas dos órgãos públicos... é uma experiência comum dos cidadãos frente ao Brasil oficial. Herança colonial ou não, a burocracia, tantas vezes baseada na desconfiança do poder sobre a sociedade, demora, encarece e frustra projetos, empresas e inclusive destinos, com aquele trâmite a mais, que muitas vezes é tão absurdo quanto desnecessário. Nos últimos anos, as novas tecnologias vieram para aliviar a situação, mas o problema ainda persiste. "O cartório é a coisa mais burocrática que existe no mundo", afirma Rosana Chiavassa, advogada especialista em defesa do consumidor. Fomos colonizados por portugueses que trouxeram na bagagem a burocracia dos registros e princípios administrativos que legitimariam a doação de bens da Coroa aos primeiros beneficiários. O Brasil é um dos poucos países onde a própria assinatura do cidadão, até os dias de hoje, não vale por si só - ela sempre deve ser "reconhecida" em um cartório para ser válida em quase todos os trâmites cotidianos dos brasileiros e processos administrativos de empresas. A polêmica de longa data foi exposta no começo de dezembro de 2013 pela pesquisadora da Universidade de São Paulo Lygia da Veiga Pereira, profissional que é referência nas pesquisas com células tronco no país. Ela publicou em um blog seu desabafo sobre as dificuldades dos pesquisadores em receber material do exterior. No post ela lista a burocracia imposta pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para liberar amostras do material para pesquisa - que vieram congeladas desde o centro de investigação norte-americano Harvard Stem Cell Institute, para uma pesquisa sobre células tronco. As amostras chegaram em 24 horas ao Brasil, com cinco quilos de gelo seco, o suficiente para mantê-las congeladas por dois dias. Nove dias depois, as células ainda não haviam sido liberadas e se encontravam detidas no Aeroporto de Viracopos, em Campinas, interior de São Paulo. Como disse Pereira em seu texto, "as preciosas células-tronco podem já ter virado mingau". Entre os documentos solicitados pela Anvisa, havia um termo de responsabilidade que deveria conter as assinaturas - neste caso, dela e do diretor do centro de pesquisa - reconhecidas em cartório. Conseguiram reunir toda a documentação em tempo e apresentá-la, mas o material não foi liberado. Dia 14 de dezembro a Anvisa lhe avisou que o material estava sendo enviado para a Alfândega, órgão responsável a partir deste ponto. "E não é a primeira vez que acontece", afirma a professora, "eu perco credibilidade quando estrago o material, é um desperdício", lamenta, pela demora no processo. No entanto, esta história teve um final feliz e em 27 de dezembro a pesquisadora pôde aproveitar as células para suas pesquisas, pois sobreviveram aos 13 dias de burocracia. Em nota, a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, a Anoreg alega que "a falta de exigência do reconhecimento de firma, por exemplo, abre brechas para golpes, como utilização de documentos falsificados na abertura de empresas”. A burocracia se justifica pela possibilidade do outro ser corrupto ou estelionatário, mas quase nunca se explica que ocorre pela falta de segurança dos próprios organismos públicos, que não têm outros mecanismos, além destes, arcaicos, para evitar as fraudes. O cidadão demora para alugar um apartamento, para abrir uma empresa, para se casar... porque ele tem que superar muitas barreiras para conseguir determinada certidão ou documento legalizado, ou seja, passos prévios a qualquer outra gestão que ele faça, ainda que o tempo gasto com a burocracia varie a cada cidade, dependendo das facilidades criadas pelas prefeituras e governos. Por último, poderíamos considerar que tudo isso ocorre pela falta de credibilidade do próprio cidadão. "Os princípios da veracidade e da boa fé inexistem nos órgãos públicos", defende Chiavassa. A desconfiança gera mais mecanismos de controle, que prejudicam o cidadão de bem. O excesso de exigências de documentos no Brasil é histórico, a ponto de o país ter tido um ministério da Desburocratização, entre 1979 e 1986, que deram origem, por exemplo, aos juizados de Pequenas Causas, que garantem soluções mais rápidas para conflitos jurídicos de pequena monta. De lá para cá, a tecnologia também se tornou um aliado do Estado e do cidadão brasileiro para reduzir as exigências de documentação. Em 1997, por exemplo, as declarações de imposto de renda feitas anualmente já podiam ser realizadas pela internet. A Polícia Federal, em muitos estados, permite ao cidadão agendar a retirada de passaporte com um formulário online. E nos estados de São Paulo e Minas Gerais existem órgãos públicos dedicados a centralizar os serviços básicos de cidadania, trânsito e setores da prefeitura para os cidadãos, que são o Poupatempo e o Minas Fácil, respectivamente, que também permitem algumas consultas e agendamentos via web. Ainda assim, demonstrar reincidentemente que uma pessoa é ela mesma e de apresentar os mesmos documentos em diferentes instâncias - RG, CPF, comprovante de residência, registro de imóvel, entre outros - torna qualquer processo cansativo e contraproducente. Para Vinicios Leoncio, advogado tributarista, repetir informação e documentos hoje em dia “é incompreensível”. A Receita Federal eliminou a exigência de documentos com firma reconhecida em 26 de dezembro do ano passado. Questionado sobre a medida, Leoncio opina que é “muito tímida”. E ataca: “Uma empresa tem que preencher 2.200 campos no formulário de declaração do imposto de renda, sendo que a maioria deles estão repetidos”, diz o autor do livro que reúne 5.565 legislações diferentes para a cobrança de um tributo municipal, o Imposto sobre Serviços (ISS) no Brasil, símbolo da ineficiência e da falta de diálogo entre o coletivo de leis. "São 5.600 legislações para tratar do mesmo assunto: impostos!", se indigna. O otimismo, no entanto, não ofusca seu ponto de vista: “Desburocratizar é um processo doloroso porque trata de mudar hábitos, mas é algo necessário, ainda que seja feito vagarosamente”.
Fonte: el pais

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